Uruguai 1976: Quando os “chicos” se sublevaram contra a ditadura

 

                      

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                                                                                                                       Por Alcino Pedrosa 

O meu pai contou-me a história

De um jogo que não esquece mais

E quando ele morrer?

Eu vou contar para o meu filho

De modo a que: ninguém mais esqueça”

Milonga violeta (1976)

A história do Defensor começou a ser escrita em 1913, pelas mãos de Alfredo Ghierra e Nicolas Podestá, os seus fundadores. Originário de um clube de operários de uma fábrica de vidro de Punta Carreta, chamado “Defensores de Huelga”, o Defensor Sporting Club teve uma existência discreta até à década de 1970, quando conheceu um dos momentos mais marcantes da sua história, com a conquista do seu primeiro título nacional de futebol.

A vitória “violeta”, em 1976, quebrou a hegemonia de quatro décadas de Nacional e Peñarol, na altura considerados os clubes do regime, e consolidou o clube como um símbolo na luta contra a ditadura, que, desde 1973, vergastava o Uruguai.

O futebol foi usado pela ditadura militar”.

A frase é tão verdadeira quanto um lugar-comum. A utilização do futebol para fins de propaganda, não sendo um exclusivo das ditaduras, encontra nelas um espaço privilegiado pela própria natureza autoritária deste tipo de regime.

O Uruguai, em 1976, vivia subjugado a uma das mais violentas ditaduras da América Latina. Num quotidiano de vida marcado pela repressão, morte e a precariedade, o estádio Luis Franzini, onde jogava o Defensor, tornar-se-ia num espaço de liberdade e, simultaneamente, numa referência na luta contra “os generais”. As suas arquibancadas estavam repletas de adeptos, não só para ver os jogos, como também para manifestar-se politicamente Um oásis no meio do clima repressivo, que assolava o Uruguai. Num ambiente desta natureza, o triunfo no campeonato teria sempre um significado especial; no caso do Defensor, em 1976, esse significado seria bem mais intenso, pela consciência política que caracterizou a campanha do clube, capaz de mobilizar uma massa enorme de gente, que ia muito além da franja de adeptos, como reconheceria Mario Benedetti:

«Nesse ano de 1976 o clube viveu um momento único, que se traduziu na revolta dos oprimidos contra os senhores, a que ninguém poderia ficar indiferente, nem mesmo um adepto nacionalista como eu. Todos vibrámos com a vitória dos “chicos”, Estava ali a prova que a ditadura não era uma entidade inabalável» (Entrevista ao jornal Pagina 12, 2004).

O Defensor alicerçou a sua vitória no pulmão,  no cérebro, na atitude, mas também na convicção (Eduardo Galeano)

José Ricardo de León, diplomado em Educação Física e um apaixonado pelo futebol, foi contratado como treinador do Defensor, no início da época. Homem com ligações à oposição, vira-se afastado da selecção uruguaia, devido às suas convicções políticas. Metódico, preparava com rigor os jogos, como se de um encenador se tratasse. Em jovem andara pelo teatro, onde teria ido buscar a paixão por Brecht, autor, que, recorrentemente, citava, nas suas palestras, aos jogadores. Na pré-época, León, numa entrevista ao Diario Desportivo, que, de resto, seria censurada, deu o mote para a campanha do clube: «Jogaremos cada jogo como uma final. Deixaremos, se necessário, a nossa pele em campo e, assim homenagearemos os adeptos e aqueles que lutam para que este estado de coisas mude» (Memorias,2000). A promessa não seria vã. León implementou no Defensor um estilo de jogo, que viria a revolucionar o futebol sul-americano. Abandonando a defesa muito rígida e os pelotazos para frente (nem sempre bem sucedidos) que caracterizavam o futebol uruguaio, León privilegiou um estilo de jogo, baseado na pressão alta, na velocidade e na troca de passes, alicerçado na simbiose entre a agressividade, a técnica e a convicção, que «não se pode confundir com a vontade de ganhar a qualquer preço, mas antes é o resultado da percepção de que podemos ser melhores e temos de lutar por isso» (Memorias, 2000).

O resultado do sistema de León traduziu-se no título nacional, desiderato até aí nunca alcançado pelo clube. Para simbolizar este momento, no final do jogo contra o Rentistas, os jogadores do Defensor realizaram a volta olímpica (acto criado justamente pelos uruguaios em 1924 nas Olimpíadas), no sentido anti-horário (facto que se tornou tradição e é repetido após cada conquista). Apesar de ser um acto considerado apenas ‘’normal’’ por muitos, foi uma expressão de liberdade e mostrou que a história, dali para frente, poderia mudar.

Ainda hoje, numa faixa violeta com letras brancas, evocando a reacção de León após a vitória, pode ler-se nas bancadas do Luis Franzini “Cambiamos la historia”.

Nota bibliográfica: Leon, Jose Ricardo de (2000), Memorias; Montevideo, Editorial Planeta

 Captura de ecrã - 2014-06-09, 19.36.36

 

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