Os Mundiais a seus pés I: “O primeiro Mundial ou a sorte de Cruyff viver com uma mulher que não gosta de futebol”

resenbrink

                          minijup                                                                                           

                                                                                                                     por João Tiago Lima

Ainda um pouco atordoado pela mágica segunda parte de Robben e Van Persie nos cinco a um à Espanha, viajo pelas estradas da memória ao meu primeiro Campeonato do Mundo. Estamos em 1974, ano da Revolução, e na tarde de treze de junho corro para casa (com certeza agarrado à bola de futebol que, quase invariavelmente, pedia como prenda de anos), porque vai começar o Mundial. «O Mundial? O que é isso?» Um campeonato disputado por selecções nacionais de todo o mundo. Passei a conhecer, portanto, os exóticos e fraquíssimos conjuntos do Zaire e do Haiti, o mítico Brasil (pela primeira vez desde 58 sem Pelé), a surpreendente Polónia de Deyna e Lato e os fabulosos holandeses que, embora, disputassem a primeira fase final desde … 1938, tinham como esplêndido cartão de visita a equipa que então melhor futebol praticava em toda a Europa: o Ajax de Amsterdão.

«O jogo já começou?» – disparei enquanto aterrava no maple da sala de estar. A minha Mãe sossegou-me e disse tranquilamente: «Não! Mas deves ver a cerimónia de abertura! É um espectáculo bem bonito!» Começou aí a minha irredutível aversão às cerimónias de abertura e de fecho dos grandes eventos desportivos. «Que seca!» – pensava eu, enquanto mordia o inevitável pão com manteiga do lanche. «Mas isto não era para ser um campeonato de futebol?».

O jogo lá veio, mas a desilusão prosseguiu ou quase. Uma partida sem golos e um Brasil chatíssimo (como que a adivinhar a futura eliminação aos pés de Cruyff e seus companheiros) que não conseguiu incomodar uma simpática Jugoslávia. «Ó Mãe! Os jugoslavos também são comunistas como os russos?!» «São de esquerda, mas não assinaram o Pacto de Varsóvia!» Não me apercebia na altura do que hoje para mim é uma evidência. Poucas coisas são tão preciosas como o futebol para compreender desde cedo os meandros da geopolítica. Adiante. Voltamos ao jogo. E descubro uma novidade técnico-táctica. O guarda-redes jugoslavo não despacha o esférico a pontapé. Após defender algum dos poucos remates canarinhos, devolve à mão a bola para os seus defensores. Esta não foi, decerto, uma inovação daquele Mundial. Mas naquela altura quantos jogos tinha eu já visto na televisão com apenas oito anos de idade?

Para além dos escassíssimos resumos do campeonato português ao fim de semana, um ou outro prélio da selecção portuguesa, a final da nossa Taça no Jamor e a inglesa em Wembley, um único jogo da minha Briosa (derrota em casa por 1-0 frente à CUF!), as quatro – ou mais, pois às vezes havia desempate! – finais europeias (Taça dos Campeões, Taça das Taças e, jogada a duas mãos, a Taça Uefa) eram os únicos matchs que era possível seguir. Mas esse início de Verão de 74 foi, sem dúvida, glorioso! Até 7 de julho, dia da final que opôs, no estádio Olímpico de Munique, a anfitriã RFA e a Holanda, vivi, extasiado, um festim futebolístico. Claro que não vi todos os jogos desta competição que englobava apenas (!!!) dezasseis selecções. A RTP não transmitia o calendário completo, mas todos os dias, antes do almoço, havia um magazine de cerca de quinze minutos com resumos dos jogos da véspera. Era um programa imperdível que antecipava um pouco o fim das peladinhas da manhã, mas valia bem a pena. Na sessão da tarde, a malta da Solum já podia imitar os tiques dos craques. Não sendo eu esquerdino nato, procurava imitar afanosamente o estilo de dois craques canhotos: o brasileiro Rivelino e … Robbie Resenbrink, o extremo holandês do Anderlecht, cujo estilo me parecia portentoso. Sim, a Holanda não era só Cruyff! Krol, Neeskens, Haan e … o jovem Johnny Rep eram verdadeiros craques. Desse meu esforço em aplicar na prática os ensinamentos televisivos poucos frutos surtiram, mas, pelo menos, fiquei ambidextro: ou seja, chuto mal com os dois pés!

Acompanhava as transmissões com literatura especializada. Nesta altura, julgo que ainda não haveria os Cadernos da Bola que, de resto, nas suas primeiras edições dedicavam a atenção apenas às competições caseiras. Mas, um dia, trouxeram-me da Livraria Bertrand, na Baixa, uma revista francesa sumptuosa: a Onze, num número especial dedicado a todas as selecções do Mundial. Li, reli e voltei a ler aquele número vezes sem conta. E, naquelas estupendas fotos a cores, os jogadores holandeses ainda pareciam mais craques.

Para além da Onze, havia lá por casa a mania da banda desenhada francófona. Entre o Ric Hochet, o Bernard Prince e o tenente Blueberry, avultava um personagem único, o avançado do AC Milan, que dava pelo nome de Vincent Larcher. O meu escasso domínio da língua de Descartes à época não me impedia de devorar os álbuns de Larcher insaciavelmente. O título preferido era Mini Jupes et Maxi-Foot e a acção passava-se toda em Amsterdão, num torneio internacional organizado pelo Ajax. O Milan, onde jogava o herói Vincent Larcher, era o principal rival dos holandeses. E as adeptas doa Ajax decidem entrar na jogada preparando num laboratório químico a forma de eliminar a estrela dos rossoneri. Como é bom de ver, o estratagema será desmascarado a tempo e as groupies do Ajax rendem-se ao charme de Vincent. Fiquei com uma certa inveja do herói. É que as adeptas holandesas eram belíssimas (e as mini saias do título realçavam essa dimensão estética do assunto) e … adoravam futebol. A que mais poderia aspirar um doente da bola que achava que andar de calções era uma humilhação da sua virilidade? «Se eu dia for contratado pelo Ajax, será que?…»

Para voltar ao meu primeiro Mundial, li o livro da grande estrela da competição, o recém-chegado a Barcelona, Johann Cruyff com o título Mundiais 74 (Edições Liber, tradução execrável de Ana Margarida, s/d). Não revelando grande habilidade literária, o mítico nº 14 do Ajax oferece ao leitor as suas impressões do campeonato, discorrendo com algum à vontade sobre a importância das relações sexuais durante os estágios (p. 40), as obsessões securitárias da organização na ressaca dos atentados terroristas nos Jogos Olímpicos de 72 (“quando queríamos pescar um pouco, além da cana, levávamos também o respectivo agente secreto. Havia mais polícias do que peixe” – p. 36) ou a diferença entre os estilos futebolísticos da Europa e da América do Sul (pp. 85-89). Para além de curiosas revelações como a que convoquei para título da prosa de hoje – pergunto-me: será que a bela Danny Cruyff usava também mini-jupes? (p. 148) – o avançado fumador (“fumo pouco: uma média de dez cigarros por dia”, p. 38) manifesta um conhecimento do jogo que, de certa forma, prenuncia o brilhante coach que depois também veio a ser. De qualquer modo, o livro permite também refazer o percurso quase triunfal dos comandados de Rinus Michel (“As suas ideias são iguais às minhas, tanto dentro como fora de campo”, p. 155) que apenas foi interrompido pela Mannschaft, onde pontificavam Beckenbauer e Müller, por exemplo, mas que, segundo Cruyff, soube antes de mais aproveitar a sua condição de anfitriã (pp. 97-101). E, surpresa pelo menos para mim, o jogador-escritor declara que não irá estar presente no Mundial de 1978 a realizar na Argentina (pp. 155-157) e no qual a laranja mecânica voltaria a sucumbir na final contra a equipa da casa. E, de facto, Johann não jogará essa prova. Só que os motivos (falsos? exagerados?) dessa ausência sempre pensei que tinham sido políticos, pois dizia-se que a Cruyff a ditadura de Videla causava repugnância. Pouco importa: Johann também assegura que aos trinta e um anos já deverá ter posto termo à sua carreira de futebolista. E, como se sabe, isso não se veio a concretizar…

É bom lembrar que nessa época Portugal era um ausente crónico dos Mundiais e dos Europeus. Claro que eu tinha pena disso suceder. Mas, a verdade é que a histeria mediático-nacionalista que contamina as grandes competições nos dias de hoje mete-me um certo asco. Por isso, decidi: este Verão só ligo a televisão quando a bola começa a rolar. Cerimónias de abertura? Análises e projecções dos jogos? Recepções e banquetes com políticos? Intermináveis directos com entrevistas analfabetas feitas aos adeptos? Ide todos para a mãe de árbitro que vos deu à luz!

tr1974

 

Esta entrada foi publicada em Geral, Os Mundiais a seus pés. ligação permanente.

Deixe um comentário